Sacrificados trabalhadores sem salário

Cinco agentes da G4S contam, do calvário por que passaram nas mãos da polícia. São relatos de quem experimentou o pior e deixou de acreditar no país e nas pessoas.

Cinco agentes da G4S contam, ao @Verdade, o calvário por que passaram nas mãos da polícia. São relatos de quem experimentou o pior e deixou de acreditar no país e nas pessoas. Pais de família que se alimentaram melhor nas celas do que nas suas casas – alguns chegaram a auferir nos últimos três meses menos de 600 meticais.

Dizem-se vítimas de uma polícia que “humilha e tortura, física e psicologicamente.” Mas, mais do que isso, são vítimas da indiferença de uma sociedade egoísta e sem valores. Porém, no meio da tempestade, encontraram a bonança nos braços da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos...

O silêncio estendeu-se por um instante e o olhar perdeu-se num ponto qualquer quando João Desgraçado*foi questionado sobre o tratamento que os seguranças da G4S passaram nas mãos da polícia. Então, como parece fazer quando falar lhe exige esforço extra, moveu a cabeça para frente num movimento lento, repousando- a entre os dedos. “Nós tentámos sobreviver como podíamos, sem deixar que aquela experiência nos destruísse”, explicou, após alguns segundos de introspecção.

“De alguma forma estavam a dizer-nos que neste país não temos direitos; que mais vale calar e aprender a sobreviver com o ar que respiramos.” Ivan, Benjamim, Milagre e Lourino concordam com o relato de João abanando a cabeça. Histórias como as deles deixam a sociedade civil com um trago na boca. As reacções à prisão dos agentes vieram de meio mundo. “Há muitos Joãos nas prisões e esquadras deste país”, desabafa Ivan. Aliás, “eu também sou um João. Até hoje tenho dores na coluna. Tudo isso porque cobrei o que a empresa me deve.”

Estes cinco seguranças, a quem a reportagem do @Verdade entrevistou no domingo, 1 de Maio, é tido como o grupo dos “24 escravos da FIR.” A designação foi criada em alusão à negação dos seguranças da G4S de exercerem o exercício de um direito constitucional: o respeitante à greve. João é uma espécie de porta-voz do grupo.

Mas, aos 38 anos, o seu vigor físico esvai-se, mas a força do espírito continua intacta para testemunhar os maus tratos que sofreu nas mãos da FIR, com outros 23 seguranças, por crime contra a propriedade num dos dias mais sombrios na história recente da lei e ordem moçambicana.

Refira-se, porém, que um desses testemunhos foi imortalizado por Alberto João*, de 38 anos de idade, nas páginas da Edição 131 do @Verdade, de 15 de Abril. Baseado nas condições de vida degradantes agravadas pelos cortes de mais de 90 porcento num salário que, inteiro, já não chegava para nada. Mas isso foi o drama fora dos limites da esquadra e da cadeia civil, um lugar completamente diferente de onde João Desgraçado, Ivan, Benjamim, Lourino e Milagre passaram nove dias.

Descida ao inferno

6 de Abril de 2011 é um data para jamais esquecer. Ou não fosse o dia em que “teria sido mais fácil ser cão”, diz Ivan. A violência de que foram vítimas na sede da G4S e na 18a esquadra não desejariam nem aosseus patrões, aos olhos dos seguranças, os verdadeiros pais da desgraça. “Um patrão não pode ter aquele tipo de insensibilidade”, condena Milagre. Ivan diz mais: “não queremos que nos paguem bem, isso sabemos que é impossível; queremos, na verdade, que não nos roubem ao menos a miséria que nos pagam.”

Os risos da polícia

“Os homens da FIR riam nas nossas caras. Ficámos um dia sem comer. Alguns colegas defecaram, de tanta agressão, nas suas próprias roupas”, sublinha João Desgraçado. “Foi horrível”, sintetiza Milagre. Porém, aquilo foi apenas o início das dores. Os nove dias que se seguiram foramos primeiros na vida, para muitos, de prisão.

A partir de então, João e 23 colegas de serviço, todos, vivem sufocados pelo aparato de uma lei com dois pesos e duas medidas, que prende e expulsa; e uma polícia que suspende direitos civis, humilha e tortura, física e psicologicamente. Apenas a sociedade civil, através da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos se bateu directamente pela liberdade dos agentes da G4S.

“Nós não fizemos nada e não percebemos porque ficámos presos se a empresa é que cometeu um crime. Eles roubaram-nos e nós é que somos criminosos”, lamentam.“Não sabemos o que teria sido de nós se a LDH e a Imprensa não tivessem pressionado”. Provavelmente, dizem, não teria sobrado ninguém para contar a história e o GroupFourSicuricor continuaria a atropelar os direitos dos moçambicanos sem que ninguém levantasse o dedo.

Assistência médica tardia

O porta-voz do Sindicato Nacional das Empresas de Segurança Privada, Boaventura Mutimucuio, já tinha dito que a assistência médica para os detidos só aconteceu 24 horas depois, a 7 de Abril, informação confirmada pelos agentes ouvidos pelo @Verdade, os quais acrescentaram que os cuidados foram recebidos na esquadra e não numa unidade sanitária.

Mas essa assistência não beneficiou a todos. Milagre, por exemplo, ainda tem problemas de audição e dores de cabeça frequentes. “O meu ouvido direito tem problemas, mas não recebi assistência médica mesmo com a insistência dos colegas.”Quem também pagou pela solidariedade para com os colegas é Ivan, um dos seguranças que teve as suas costas maltratadas pelas bastonadas ferozes da FIR. Não foi visto pelos agentes de saúde pela forma como intercedeu para que Milagre fosse assistido. Resultado: ambos foram privados de ver o médico.

Os casos de Ivan e Milagre, diga-se, nem eram os mais graves. Lourino, um dos sete seropositivos que estava nos 24 detidos, ficou 9 dias sem tratamento anti-retroviral. Se nos dois primeiros casos o efeito pode surgir no futuro, na situação de Lourino“os dias de vida reduziram.” O tratamento anti-retroviral é de carácter contínuo e esses nove dias, nada para quem respira saúde, podem fazer toda a diferença na vida de um seropositivo. “Acredito que posso viver menos”, diz Lourino.

Porém, a verdade não é assim tão linear. Esses noves dias podem fazer a diferença, mas nem sempre. Estudos do género falam de interrupções temporárias ao longo de oito dias de tratamento, nas quais as pessoas podem desenvolver doenças relacionadas com o HIV e o risco de morte.

Por outro lado, as suspensões longas na medicação, cerca de três meses, produzem resultados nefastos no paciente. Lourino faz parte de um grupo de doentes que interromperam o tratamento, pelo menos uma vez, dos quais apenas 63 porcento revelaram um aumento das células CD4. Eis o drama de Lourino: saber, se daqui a oito anos, fará parte dessa feliz percentagem. Algo que só o tempo dirá. “Enfim, fazer o quê?”, interroga cabisbaixo.

Em suma: assim eles descobriram o horror na prisão, e nela as sevícias, a fome, a miséria. “Nós sabíamos dos maus modos da FIR e da comida sem qualidade da cadeia. Mas não acreditávamos que pessoas que reivindicam os seus direitos também pudessem ser mandadas para a prisão”, dizem, agora conscientes do valor que um homem tem para o país.

“Sabíamos que as manifestações são reprimidas pela polícia. Mas jamais imaginámos que pudéssemos ser vítimasde um crime contra os direitos do Homem.” João Desgraçado acrescenta: “a comida da cadeia era melhor do que a da minha casa. Pelo menos nos últimos três meses em que os salários baixaram como nunca antes.”

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